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I JORNADAS INTERFÓRUNS
PRELÚDIO IV

Psicanálise e segregação espacial

Joseane Garcia*

Vamos estar submergidos, não vai demorar muito, […]
por todos os problemas de segregação que serão
intitulados ou fustigados com o termo racismo […]. [1]

É a partir da experiência de horror dos campos de concentração que Lacan constrói uma noção sobre segregação. Na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, Lacan propõe que os campos de concentração não se reduzem a um momento determinado da história, eles têm a posição de precursores em relação ao que irá se desenvolver como consequência do remanejamento dos grupos sociais pela ciência, e, especialmente, da universalização que ela introduz [2]. A universalização proveniente da ciência pode ser traduzida em termos da promoção de um sujeito puro e seria o fundamento da prática de concentração de massas humanas. O processo de segregação se refere, portanto, a manter massas humanas separadas por espaços, eliminando as diferenças em prol de uma universalização.

Enchentes e desmoronamentos em contexto de fortes chuvas têm se tornado cada vez mais frequentes no Brasil. Um ano após a tragédia de Petrópolis (RJ), em que mais de 200 pessoas morreram, o país viveu mais uma nova tragédia relacionada a grandes volumes de chuva registrados em um intervalo curto de tempo. O alto índice pluviométrico que castigou o litoral norte de São Paulo, no mês de fevereiro deste ano, levou à morte mais de 60 pessoas. Infelizmente, não foi a primeira e nem a última tragédia… Muitas outras aconteceram e outras estão por vir.

Ainda que as tempestades estejam ligadas ao contexto de emergência climática que vivemos, destaco um ponto anterior a este que são os processos históricos de formação territorial, nos quais a segregação espacial é elemento central. Ninguém escolhe morar em área de risco. É um erro afirmar que a população mora lá por “escolha”. Elas são empurradas, historicamente, para essas áreas. A exclusão dos mais pobres e sua transferência para as periferias e morros das cidades é resultado desse processo de segregação, produzindo “cidades excluídas e invisibilizadas”. Populações mais pobres são forçadas a ocupar as terras marginais, que têm pouco ou nenhum valor, em encostas, beira de rios e canais. São favelas e loteamentos clandestinos.

A segregação espacial pode ter outro nome: racismo ambiental. O racismo ambiental [3] são as injustiças ambientais sofridas por minorias sociais, populações negras e indígenas, consequências do nosso sistema de produção e exploração da natureza. Ele se refere à carga desproporcional dos riscos, dos danos e dos impactos sociais e ambientais que recaem sobre os grupos étnicos mais vulneráveis.

Ainda na Proposição, Lacan prevê que o futuro de mercados comuns (europeus) se equilibrará com a ampliação cada vez mais forte dos processos de segregação. A construção desorganizada das casas nos morros de Petrópolis ou da Vila de Sahy pode ser lida como decorrente das alterações nas cidades pelo capitalismo. O discurso capitalista é um discurso que segrega, não forma laço social! A falta de infraestrutura urbana para a permanência segura de moradias em áreas de morro nas regiões mais pobres é um produto do sistema que transforma a necessidade humana básica de morar em mercadoria.

Racismo ambiental e  necropolítica andam juntos, uma vez que eles se retroalimentam e fazem parte do mesmo processo de expansão do capital, lembrando da capacidade da necropolítica de escolher aqueles que podem viver e os que devem morrer.

O que pode a psicanálise diante da desvalorização de sujeitos que estão nesse lugar abjeto de segregação? Nossa tarefa como psicanalistas exige que estejamos atualizados com a urgência de nosso tempo para melhor responder ao sofrimento do sujeito na contemporaneidade. Convido a todxs para discutir essa e outras questões junto comigo e com os colegas dos Fóruns que se localizam no Estado do Rio de Janeiro na nossa I Jornada Interfóruns!

* Membro do FCL Região Serrana e membro de Escola da EPFCL.

[1] LACAN, Jacques. Lição I, de novembro de 1971. In: LACAN, Jaques. O saber do psicanalista. Centro de Estudos Freudianos do Recife: Recife, 2000-2001, p. 23
[2] LACAN, Jacques. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola (1967). In: LACAN, Jacques. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2003, p. 263.
[3] O termo racismo ambiental surgiu pela primeira vez em 1981 nos Estados Unidos, cunhado por Benjamin Franklin Chavis Jr., líder de um grupo antirracista que protestava contra o despejo de resíduos tóxicos, que em sua maioria era sempre próximo à moradia de pessoas pobres e não brancas.