I JORNADAS INTERFÓRUNS
PRELÚDIO I
Efeitos de segregação em nossa época e suas incidências na infância
Rosane Melo
O tema das Jornadas nos convida às reflexões necessárias e urgentes sobre os efeitos das transformações tecnológicas e políticas, engendradas na nossa época, e muitas vezes interpretadas como avanços de uma civilização que se orgulha em abrir na agenda global o debate do reconhecimento da existência da igualdade entre todos os homens e a promessa de uma reengenharia da vida. Entretanto, os avanços civilizatórios deixam em sua sombra o que a sociedade mercantil e os imperativos da insaciável produção capitalista instauraram sobre todo planeta Terra: colapso social e ecológico, novos “usos do corpo”[1], precarização e seus efeitos nas identidades sociais, epidemias, novas práticas segregativas etc. As mudanças nos discursos e, por consequência, nos laços sociais, afetam e reordenam as relações entre o poder e o saber e criam impasses crescentes na nossa civilização, tal como acompanhamos nos produtos do discurso da ciência e a uniformização que este introduz. A Psicanálise extrai da clínica os paradoxos que articulam os temas da identificação e da singularidade, e demonstra os embaraços do falasser diante do que constitui como identidade a partir das identificações aos significantes, às marcas do Outro, da identificação à imagem e ao semelhante, à ordem simbólica que o precede. A partir das contribuições da clínica e da teoria psicanalítica interrogamos as marcas do Outro nas trajetórias de diferentes infâncias atravessadas por essas transformações de nossa época e que determinam as infâncias de rua, as infâncias institucionalizadas, as infâncias patologizadas e medicalizadas cada vez mais precocemente, as infâncias indesejadas e exterminadas nas favelas do Rio de Janeiro ou as que “adormecem” por meses nos campos de refugiados em diferentes países. A expansão dos diagnósticos e a medicalização crescente de crianças e adolescentes, por exemplo, pode ser interpretada e interpelada como “efeito da universalização dos modos de gozo”[2] justamente por impor uma supressão das diferenças. Reflexo de um projeto político que atinge a infância e seus modos de existir dentro de uma sociedade planificada em um projeto de ciência que visa “colonizar todo o real” [3]? Ou o pior, a política de extermínio que ronda as crianças pobres, pretas, indígenas em nosso país obedece a um programa de destruição no discurso capitalista? Para Lacan[4], há um preço a se pagar por essa universalização do sujeito e ele nos apresenta, a partir de exemplos históricos, os efeitos de segregação, suas características de organização, planificação racional e composição. Aos exemplos lacanianos, os campos de concentração nazistas e os campos de concentração soviético, Sidi Askofaré acrescenta as tragédias históricas do Apartheid sulafricano e os campos de reeducação chinês e cambojano. Como indica Askofaré, no ensino de Lacan, a noção de segregação surge entre 1967 e 1970 a partir do entrecruzamento de três problemáticas: o laço social e a política, a instituição analítica e o passe, o discurso da ciência e a foraclusão do sexo e do amor. [5] Dos efeitos de segregação à segregação estrutural, o que pode o analista? Perguntas que nos conduzem tanto à psicanálise em intensão quanto em extensão, e consideramos que para estar à altura das subjetividades de nossa época urge mantermos o estilete cortante no tecido da ideologia dominante, usado por Freud na “Psicologia das massas”[6] e no “Mal-estar na civilização”[7].
*Rosane Melo (AME da EPFCL, Membro do FCL-RJ)
[1] Giorgio Agambem (2017) se utiliza da expressão de Aristóteles “o uso dos corpos”, que aparece no início de Política, para dar título ao seu livro e dar continuidade à saga do Homo Sacer. Aristóteles usa tal expressão na parte em que define a natureza do escravo.
[2] Soler, C. (2011). A propósito de la segregación. Em: Incidencias políticas del psicoanálisis. Barcelona: S&P edic
[3] Quinet, A. (2008). A descoberta do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
[4] Lacan, J. Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. Em: J. Lacan. Outros escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, pp 249-264.
[5] Os textos indicados por Askofaré para seguir a noção de segregação no ensino de Lacan são: a Proposição de 9 de outubro, o Breve discurso de Lacan aos psiquiatras, a lição de de 11 de março de 1970 no O Seminário, livro 17, o avesso da Psicanálise. Ver: Askofaré, S. Clínica del sujeto y del lazo social. Coleccíon Ánfora, Estudios de psicoanálisis, Bogotá: Colombia, 2012.
[6] FREUD, S. (1921). “Psicología de las masas y análisis del yo”. In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu editores, volumen 18, 1976.
[7] FREUD, S. (1930 [1929]) El malestar en la cultura. “. In: Obras completas.
Buenos Aires: Amorrortu Editores, volumen 21, 1976.