XI Jornadas do Fórum do Campo Lacaniano
PRELÚDIO I
Por que sua filha é muda?
Maria Vitória Bittencourt
A pergunta que me serviu de título é extraída de uma frase de Lacan no Seminário XI, a qual nos alerta que “à análise não cabe encontrar num caso o traço diferencial da teoria e querer explicar porquê sua filha é muda, trata-se de fazê-la falar”, ou seja, levantar o “mutismo do sujeito suposto falante” [1].
Lacan, por sua vez, extrai essa frase de uma peça de Molière, que se intitula Médécin malgré lui ou “Médico à força”, conforme a tradução em português. Nela, um falso médico explica ao pai qual seria a causa do aparente mutismo de sua filha, usando uma linguagem totalmente incompreensível, numa sequência de frases sem sentido que terminam com a célebre exclamação: “Eis porquê sua filha é muda!”. Ora, isso serve de motivo para que Lacan mencione que as explicações confusas que ainda persistiam na psicanálise não bastavam para garantir seu estatuto teórico, era necessário levantar a questão do desejo do analista.
Como o maior efeito do desejo do analista é justamente fazer falar, pergunto se a expressão “mutismo do sujeito suposto falante” poderia ser aplicada aos sujeitos autistas. Pois, como fazer falar esses sujeitos que, embora habitem a linguagem, encontram-se paralisados quanto à fala e se recusam a entrar no laço social via discurso?
No entanto, temos uma ilustração desse efeito de ‘fazer falar’ no caso Dick de Melanie Klein. Segundo Lacan, foi por meio de uma “injeção edípica” que ela levou a criança a fazer seu primeiro apelo, configurando um esboço de demanda dirigido à baba para que ela viesse protegê-lo. Para Dick, esta foi uma maneira de fazer sua “entrada no real”, sintagma com que Lacan define o momento em que o sujeito se eclipsa sob os significantes da demanda [2]. Porém, essa entrada no real não foi sem angústia para Dick, que se viu confrontado ao desamparo diante do enigma do desejo do Outro.
Fazer falar implica provocar angústia? Como manejar essa angústia? Nesse mesmo seminário, Lacan aborda o manejo da transferência de várias maneiras: “Na experiência é necessário canalizá-la (a angústia) e, se ouso dizer, dosá-la para não ser por ela submerso. Aí está uma dificuldade correlativa da que há em conjugar o sujeito com o real.” [3] Nesse caso, a presença falante de Melanie Klein, seu desejo de analista, poderíamos dizer, ilustra a afirmação de Lacan de que “O fato de que (autistas) não nos escutam, não significa que não haja algo para lhes dizer”. [4] Não podemos negar os efeitos do desejo de analista em Melanie Klein cuja presença “verbosa” fez Dick falar.
Mas, como a clínica pode ilustrar a necessidade dessa dosagem de angústia que
orienta o manejo da transferência? Há casos em que podemos constatar como a angústia faz o sujeito calar numa espécie de anorexia da palavra que pode levar à confusão no diagnóstico. Mutismo não é autismo, eis uma questão a ser debatida em nossa Jornada.
[1] Lacan, J. O Seminário Livro 11 Quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Zahar Ed, Rio de Janeiro, 1979, p.18
[2] Lacan,J,- “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache” in Escritos,Zahar, Rio, 1998, p.662.
[3] Lacan, J. – Seminário Livro XI Os quatro conceitos da psicanalise, Zahar, Rio, 1979, p.43.
[4] Lacan, J. – “ Conferência sobre o sintoma em Genebra”(1975).